segunda-feira, 31 de março de 2014

Pegação, casamento e outras omissões do binarismo

Quando comecei a estudar pegação, há cerca de dois anos, meu interesse no tema eram bem claros. Havia naquele momento questões pessoais e políticas que me motivavam - e ainda motivam - a pensar tal questão. A questão pessoal se referia ao espaço e às coisas que aprendi quando, ainda adolescente, passava boa parte das minhas noites e tardes em determinados lugares de João Pessoa conversando e flertando com amigos e desconhecidos que, tal qual eu, procuravam por alguma forma de encontro ou contato corporal, que ainda que fossem quase sempre eróticos ou sexuais, transpassava tais noções e rapidamente se transformavam em múltiplas formas de parceria, cooperação e amizade. A outra questão, de caráter político, dizia respeito aos critérios e imagens que constituíram o que hoje reconhecemos como "identidade gay", uma identidade standard que apesar de tão fragmentária e polimorfa manifesta a cruel capacidade de rotular e castrar experiências efeitvas e  sexuais de maneira bastante essencializada. Me interessa hoje particularmente pensar como essa essencialização da identidade que se cristalizou em critérios e referências para definir quem é ou não gay está inscrustada em valores morais hierarquizados.  Nesse sentido gostaria de compartilhar aqui um artigo recente do blog "Os Entendidos" que se pretende justamente a questionar essas hierarquizações morais que se apresentam como tão naturais e comuns - como se fossem. Sem mais enrolação, apresento o texto na íntegra. 


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Casamento não é (necessariamente) melhor que pegação

Lindo moço gay inveja a felicidade sacrossanta que apenas um relacionamento pode trazer. Procura homem em bar e depois no Grindr, e fica arrasado quando só encontra sexo rápido. Cobrado pela família, vai surfar para esfriar a cabeça. Na praia, tal qual um presente de Netuno ou uma oferenda devolvida por Iemanjá, surge outro homem lindo. Entre brincadeiras de lutinha, a sorte sorri para nosso herói: ele é pedido em casamento!

Tudo muito legal. Apaixonar-se por alguém e ainda por cima ser correspondido é um milagre, já que não é fácil corresponder ao ideal romântico, tido como o “Santo Graal” da felicidade. O problema da historinha está no início e principalmente nas reações que ela tem provocado.

“Fofo”, “tocante”, “invejável”… Tudo isso foi dito do vídeo que conta essa história, com a estrutura típica dos contos de fada: depois de anos de amargura, a felicidade eterna vem na forma de um “príncipe”. Todos são lindos e sarados, mas quem não é hoje em dia, né? E logicamente, nenhuma família entenderia um filho (adulto) que busca sexo no celular. Então, só um idílico relacionamento sério pode trazer a paz para todos… Ah,pelamor!

Não tenho nada contra o casamento, que fique claro. O tal vídeo, produzido pelo fotógrafo Elvis Di Fazio para encerrar as celebrações do 2014 Sydney’s Gay and Lesbian Mardi Gras, é realmente lindo e a causa, nobre. Como o festival celebra de maneira muito viva o que é considerado um estereótipo da comunidade gay, com suas festas e plumas, é importante mostrar que muitos de nós só queremos assistir um DVD aconchegados num peito peludo canto com quem amamos. Para completar, a luta por igualdade civil é a maior causa política da agenda LGBT, sendo o casamento uma das questões mais debatidas. Todos que pensam em casar devem ter esse direito, só não está certo demonizar gostos e preferências alheias!
Atualmente, essa parece ser a grande disputa da comunidade gay. De um lado, temos os “discretos”, os que “se dão ao respeito” e “não levantam bandeiras”, além de ficarem chocadíssimos quando um vídeo de pegação expõe a “promiscuidade gay”. Do outro, as “pintosas” que “querem aparecer” e são o MOTIVO de não sermos levados à sério, junto com os libertinos que não conseguem controlar seus desejos e “fazem as pessoas normais nos tratarem como degenerados”. Como sempre, nos binarismos “másculo/efeminado”, “certo/errado”, “bom/ruim” e “moral/imoral”.

Esse feudo só nos empobrece. O início do vídeo australiano que é equivocado, ao mostrar o protagonista desesperado por não encontrar “o cara certo” na pegação, como se a liberdade – ou libertinagem – sexual fosse um problema. Por que ele não poderia ser feliz pegando geral e depois ter encontrando uma pessoa com quem quisesse construir um relacionamento? Por acaso vale mais um cara com “pouco uso”? É impossível construir algo com alguém que você conheça num Dark Room? E se por acaso você conhecesse essa mesma pessoa no dia seguinte, só que na igreja, ela seria algum pilar do “bom mocismo”? Poxa, sejamos menos moralistas, né?!

É exatamente por esse tipo de policiamento e valoração da experiência sexual que foi criada uma identidade gay, colocando-nos em uma “casta” inferior. É por causa desse tipo de pensamento que às mulheres é negado o domínio de seus corpos, transformando em “putas” as que ousam ter prazer. Esse é o verdadeiro desrespeito. Uma filosofia que desumaniza as pessoas e pretende que elas se envergonhem de seus desejos e amores, como se existisse um único formato válido de relacionamento. É isso que nos divide em “certos” e em “errados”, quando na verdade o único erro está na forma de julgamento.

O casamento é uma escolha entre pessoas que se amam e não uma “tábua de salvação dos perigos da vida de solteiro”. É absurdo que uma população vítima de opressão – e que portanto nunca será “normal”, já que não é tratada como tal – bata palmas para um julgamento de moral só porque ele foi “decorado” com um homem gostoso em cada ponta. Isso sem falar na música Same Love, que ninguém aguenta mais o tempo todo parece pedir desculpas por algo que “não poderíamos mudar, mesmo que quiséssemos”. Vamos superar isso!

Não gosta de pegação? Nunca chupou ninguém numa festa? Só usa o celular pra jogarFlappy Bird? Está dormindo no alto da torre esperando um príncipe da Disney? Ótimo! Continue assim e seja muito feliz. Só não tente impor essas escolhas como as corretas, pois talvez elas só sirvam para você. Ah, mas então eu é que estou impondo as minhas aqui? De forma alguma! Eu transarei com quem e quando quiser, independente de acharem certo ou não, muito obrigado. Respeito não se pede e nem se faz por merecer, pois é um direito. Quando eu quiser, vou até casar. O que não quero é ver um grupo dividido por uma ideologia que não é a nossa, mas de quem nos oprime.

Nada é necessariamente melhor do que nada. Algumas coisas são apenas mais adequadas a uns do que a outros. Goze e deixe gozar!

Confira o vídeo Marry Me abaixo:


marry me from elvisdifazio on Vimeo.

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