quinta-feira, 2 de julho de 2015

Camisinha Química

Apresentação do Tradutor
É quase comum que uma discussão sobre pegação acaba por incluir também debates e discussões sobre noções como risco e saúde atreladas à prática sexual das pessoas engajadas nesse universo. Nessa interseção, em especial quando se fala de práticas de pegação entre homens que transam com outros homens, a pauta do hiv e da aids se fazem ainda mais presente.

Nas últimas semanas razões diversas me levaram a pesquisar sobre tratamentos antirretrovirais e mais especificamente sobre estratégias de profilaxia pré-exposição (PrEP), uma pauta que vem se popularizando principalmente nos Estados Unidos com o advento do Truvada (um medicamento constituído basicamente por antirretrovirais para pessoas que não foram contaminadas pelo vírus e que não querem ser contaminadas; um dos principais argumentos nesse ponto é a possibilidade de exercício de práticas sexuais mais livres quando se considera então a não necessidade de uso dos preservativos de látex) e a indicação de seu uso por importantes agências estatais responsáveis pela regulação de medicamentos e da saúde pública. 

O texto a seguir é uma tradução de um artigo publicado pelx filósofx espanhol/a Paul B. Preciado (há pouco chamadx de Batriz Preciado). Um dos principais nomes da filosofia pós-estuturalistas e da teorias de gênero e sexualidades contemporâneas, Preciado tem oferecido importantes contribuições a esse campo através de uma discussão sobre os dispositivos contemporâneos que constroem as políticas das sexualidades ocidentais, com especial atenção para aquilo que chama de farmacopornografia, ou seja, o modo como se articulam elementos pornográficos e da indústria farmacêutica na construção de subjetividades. O texto a seguir é um artigo recente publicado por Preciado na página do Projeto El Estado Mental e nele x filósofx apresenta algumas considerações sobre o Truvada, um medicamento produzido por uma companhia americana e que tem sido administrado como estratégia medicamentosa para profilaxia pré-exposição ao hiv, ou seja, uma maneira de controlar a contaminação pelo vírus principalmente entre pessoas que mantém práticas e estilos de vida considerados como de risco (trabalhadores do sexo, pessoas que praticam sexo sem camisinha, entre outrxs). 

Para ler o texto em sua versão castelhana, clique aqui.

Além disso, o programa Lado Bi, produzido pela rádio Uol, produziu dois programas que podem ajudar aos interessados e iniciantes entenderem um pouco do plano de fundo criticado pelo texto. O primeiro é sobre antirretrovirais e o segundo especificamente sobre o Truvada. Para os adeptos do podcast e da linguagem de rádio, há também um programa mais recente sobre PrEP

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Se você não é um homem que faz sexo com outros homens (HSH), seguramente a palavra "Truvada" não te diz nada. Já se, pelo contrário, você entende a que a palavra faz referência, é porque ela está modificando sua ecologia sexual: o onde, como, quando e com quem. Truvada é um fármaco antirretroviral, produzido pela companhia San Francisco Giled Sciences e comercializado como PrEP (profilaxia pré-exposição) para prevenir a transmissão do vírus da aids. Inventado primeiro como tratamento para pessoas soropositivas, desde 2013 a Agência Americana de Medicamentos aconselha a administração desse químico [molécula] entre as pessoas soronegativas pertencentes a grupos em risco, o que, na cartografia epidemiológica, ainda equivale, em grande medida s homens gays passivos, ou seja, o receptor anal da penetração e ejaculação. Na Europa estudos clínicos começaram em 2012 e puderam concluir, como uma recomendação positiva, sua comercialização a partir de 2016. Apenas no primeiro ano, o Truvada (cujo custo mensal é de 1.200 dólares, e não há genérico) gerou lucro de três bilhões de dólares. Calcula-se que um milhão de norte-americanos poderiam converter-se em consumidores de Truvada para evitar converter-se em consumidores dos fármacos antirretrovirais para soropositivos. 

O Truvada está produzindo uma transformação na sexualidade gay semelhante aquela produzida pela pílula do dia seguinte na sociabilidade heterossexual nos anos 1970. Tanto o Truvada como a pílula do dia seguinte funcionam do mesmo modo: são preservativos químicos pensados para "prevenir" riscos derivados de uma relação sexual, sejam esses riscos o contágio pelo vírus HIV ou uma gravidez indesejada. A transversal "pílula-Truvada" nos força a pensar nas tecnologias de controle da sexualidade fora das lógicas de identidade inventadas pelo discurso médico-jurídico do século XIX. Tanto a pílula como o Truvada são provas da transição, desde meados do século passado, de uma sexualidade controlada por aparatos disciplinares 'duros' e externos (arquiteturas segregadas e de confinamento, cintos de castidade, camisinhas, etc.) a uma sexualidade mediada por dispositivos farmacopornográficos: novas tecnologias brandas, biomoleculares e digitais. A sexualidade contemporânea está construída por moléculas comercializadas pela indústria farmacológica e por um conjunto de representações imateriais que circulam pelas redes sociais e meios de comunicação.

Vejamos alguns deslocamentos cruciais que ocorrem ao mesmo passo desde a camisinha de látex até as camisinhas químicas: a primeira mudança é o corpo sobre o qual a técnica é aplicada. A profilaxia química, diferente da camisinha de látex, já não afeta o corpo hegemônico (o corpo masculino 'ativo', quer dizer, penetrante e ejaculador, cuja posição é idêntica no agenciamento heterossexual como gay) mas aos corpos sexualmente subalternos, os corpos com vaginas ou ânus penetrados e potenciais receptores de esperma, expostos tanto ao risco de engravidar como da transmissão viral. Além disso, no caso desses preservativos químicos, a decisão do uso não é tomada no ato sexual em si, mas anteriormente, de modo que o usuário que ingere a molécula constrói sua subjetividade em uma relação temporal de fortuidade: em seu tempo vital e na totalidade de seu corpo, mas também a representação de si mesmo e a percepção das possibilidades de ação e interação, os que são transformados pelo consumo do fármaco. Truvada não é um simples medicamento, tampouco uma vacina, de modo que, como a pílula, funciona como uma máquina social: um dispositivo bioquímico que, ainda que aplicado aparentemente em um corpo individual, opera sobre o corpo social em seu conjunto, produzindo novas formas de relação, desejo e afetividade. O mais importante e o que quiçá explique o êxito, não só farmacológico, mas também político da pílula a partir dos anos 1970, e do Truvada hoje, é que os preservativos químicos, suplementados também pela molécula Sildenafil (viagra), permite construir  fantasia de uma sexualidade masculina "natural" totalmente soberana cujo exercício (entendido como ereção, penetração e circulação ilimitada de esperma) não se vê restita por barreiras físicas. 

Se o barebacking (o sexo sem camisinha entre gays soropositivos) foi pensado nos anos 1990 como uma sorte do terrorismo sexual (recordemos a polêmica que opunha o escritor Guillaume Dustan e os atividades de Act Up em torno da profilaxia na França), agora o sexo segura e responsável é o barebacking com Truvada. Farmalogicamente higiênico, sexualmente viril. O poder do fármaco reside em sua capacidade para produzir uma sensação de autonomia e liberdade sexual. Sem mediação visível, sem preservativo de látex, o corpo masculino penetrante obtém a sensação de plena soberania sexual, quando na realidade cada uma de suas gotas de esperma está mediada por complexas tecnologias farmacorpornográficas. Sua livre ejaculação só é possível graças à pílula, ao  Truvada, ao viagra, à imagem pornográfica...

O Truvada, como a pílula, talvez não tenha como objetivo melhorar a vida de seus consumidores, mas otimizar a exploração dócil dos mesmos, sua servidão molecular, mantendo sua ficção de liberdade e emancipação ao mesmo tempo que reforça as posições sexo-políticas de dominação pela masculinidade normativa. A relação com o fármaco é uma relação livre, mas de sujeição social. Vamos foder livremente, vamos foder com o fármaco. Com respeito a essa servidão molecular, parece não haver diferença entre a heterossexualidade e a sexualidade gay. Nos últimos 20 anos a sexualidade gay passou de uma subcultural marginal e converteu-se em um dos espaços mais codificados, regulamentados e capturados pela linguagem do capitalismo neoliberal. Talvez seja hora de deixar de falar de heterossexualidade e homossexualidade e começar a pensar melhor a tensão entre os usos normativos e dissidentes das técnicas de produção da sexualidade que aparecem hoje e afetam a  nós todas e todos.

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Para conhecer um pouco mais sobre Preciado e suas ideias, confira essa entrevista.