quinta-feira, 2 de julho de 2015

Camisinha Química

Apresentação do Tradutor
É quase comum que uma discussão sobre pegação acaba por incluir também debates e discussões sobre noções como risco e saúde atreladas à prática sexual das pessoas engajadas nesse universo. Nessa interseção, em especial quando se fala de práticas de pegação entre homens que transam com outros homens, a pauta do hiv e da aids se fazem ainda mais presente.

Nas últimas semanas razões diversas me levaram a pesquisar sobre tratamentos antirretrovirais e mais especificamente sobre estratégias de profilaxia pré-exposição (PrEP), uma pauta que vem se popularizando principalmente nos Estados Unidos com o advento do Truvada (um medicamento constituído basicamente por antirretrovirais para pessoas que não foram contaminadas pelo vírus e que não querem ser contaminadas; um dos principais argumentos nesse ponto é a possibilidade de exercício de práticas sexuais mais livres quando se considera então a não necessidade de uso dos preservativos de látex) e a indicação de seu uso por importantes agências estatais responsáveis pela regulação de medicamentos e da saúde pública. 

O texto a seguir é uma tradução de um artigo publicado pelx filósofx espanhol/a Paul B. Preciado (há pouco chamadx de Batriz Preciado). Um dos principais nomes da filosofia pós-estuturalistas e da teorias de gênero e sexualidades contemporâneas, Preciado tem oferecido importantes contribuições a esse campo através de uma discussão sobre os dispositivos contemporâneos que constroem as políticas das sexualidades ocidentais, com especial atenção para aquilo que chama de farmacopornografia, ou seja, o modo como se articulam elementos pornográficos e da indústria farmacêutica na construção de subjetividades. O texto a seguir é um artigo recente publicado por Preciado na página do Projeto El Estado Mental e nele x filósofx apresenta algumas considerações sobre o Truvada, um medicamento produzido por uma companhia americana e que tem sido administrado como estratégia medicamentosa para profilaxia pré-exposição ao hiv, ou seja, uma maneira de controlar a contaminação pelo vírus principalmente entre pessoas que mantém práticas e estilos de vida considerados como de risco (trabalhadores do sexo, pessoas que praticam sexo sem camisinha, entre outrxs). 

Para ler o texto em sua versão castelhana, clique aqui.

Além disso, o programa Lado Bi, produzido pela rádio Uol, produziu dois programas que podem ajudar aos interessados e iniciantes entenderem um pouco do plano de fundo criticado pelo texto. O primeiro é sobre antirretrovirais e o segundo especificamente sobre o Truvada. Para os adeptos do podcast e da linguagem de rádio, há também um programa mais recente sobre PrEP

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Se você não é um homem que faz sexo com outros homens (HSH), seguramente a palavra "Truvada" não te diz nada. Já se, pelo contrário, você entende a que a palavra faz referência, é porque ela está modificando sua ecologia sexual: o onde, como, quando e com quem. Truvada é um fármaco antirretroviral, produzido pela companhia San Francisco Giled Sciences e comercializado como PrEP (profilaxia pré-exposição) para prevenir a transmissão do vírus da aids. Inventado primeiro como tratamento para pessoas soropositivas, desde 2013 a Agência Americana de Medicamentos aconselha a administração desse químico [molécula] entre as pessoas soronegativas pertencentes a grupos em risco, o que, na cartografia epidemiológica, ainda equivale, em grande medida s homens gays passivos, ou seja, o receptor anal da penetração e ejaculação. Na Europa estudos clínicos começaram em 2012 e puderam concluir, como uma recomendação positiva, sua comercialização a partir de 2016. Apenas no primeiro ano, o Truvada (cujo custo mensal é de 1.200 dólares, e não há genérico) gerou lucro de três bilhões de dólares. Calcula-se que um milhão de norte-americanos poderiam converter-se em consumidores de Truvada para evitar converter-se em consumidores dos fármacos antirretrovirais para soropositivos. 

O Truvada está produzindo uma transformação na sexualidade gay semelhante aquela produzida pela pílula do dia seguinte na sociabilidade heterossexual nos anos 1970. Tanto o Truvada como a pílula do dia seguinte funcionam do mesmo modo: são preservativos químicos pensados para "prevenir" riscos derivados de uma relação sexual, sejam esses riscos o contágio pelo vírus HIV ou uma gravidez indesejada. A transversal "pílula-Truvada" nos força a pensar nas tecnologias de controle da sexualidade fora das lógicas de identidade inventadas pelo discurso médico-jurídico do século XIX. Tanto a pílula como o Truvada são provas da transição, desde meados do século passado, de uma sexualidade controlada por aparatos disciplinares 'duros' e externos (arquiteturas segregadas e de confinamento, cintos de castidade, camisinhas, etc.) a uma sexualidade mediada por dispositivos farmacopornográficos: novas tecnologias brandas, biomoleculares e digitais. A sexualidade contemporânea está construída por moléculas comercializadas pela indústria farmacológica e por um conjunto de representações imateriais que circulam pelas redes sociais e meios de comunicação.

Vejamos alguns deslocamentos cruciais que ocorrem ao mesmo passo desde a camisinha de látex até as camisinhas químicas: a primeira mudança é o corpo sobre o qual a técnica é aplicada. A profilaxia química, diferente da camisinha de látex, já não afeta o corpo hegemônico (o corpo masculino 'ativo', quer dizer, penetrante e ejaculador, cuja posição é idêntica no agenciamento heterossexual como gay) mas aos corpos sexualmente subalternos, os corpos com vaginas ou ânus penetrados e potenciais receptores de esperma, expostos tanto ao risco de engravidar como da transmissão viral. Além disso, no caso desses preservativos químicos, a decisão do uso não é tomada no ato sexual em si, mas anteriormente, de modo que o usuário que ingere a molécula constrói sua subjetividade em uma relação temporal de fortuidade: em seu tempo vital e na totalidade de seu corpo, mas também a representação de si mesmo e a percepção das possibilidades de ação e interação, os que são transformados pelo consumo do fármaco. Truvada não é um simples medicamento, tampouco uma vacina, de modo que, como a pílula, funciona como uma máquina social: um dispositivo bioquímico que, ainda que aplicado aparentemente em um corpo individual, opera sobre o corpo social em seu conjunto, produzindo novas formas de relação, desejo e afetividade. O mais importante e o que quiçá explique o êxito, não só farmacológico, mas também político da pílula a partir dos anos 1970, e do Truvada hoje, é que os preservativos químicos, suplementados também pela molécula Sildenafil (viagra), permite construir  fantasia de uma sexualidade masculina "natural" totalmente soberana cujo exercício (entendido como ereção, penetração e circulação ilimitada de esperma) não se vê restita por barreiras físicas. 

Se o barebacking (o sexo sem camisinha entre gays soropositivos) foi pensado nos anos 1990 como uma sorte do terrorismo sexual (recordemos a polêmica que opunha o escritor Guillaume Dustan e os atividades de Act Up em torno da profilaxia na França), agora o sexo segura e responsável é o barebacking com Truvada. Farmalogicamente higiênico, sexualmente viril. O poder do fármaco reside em sua capacidade para produzir uma sensação de autonomia e liberdade sexual. Sem mediação visível, sem preservativo de látex, o corpo masculino penetrante obtém a sensação de plena soberania sexual, quando na realidade cada uma de suas gotas de esperma está mediada por complexas tecnologias farmacorpornográficas. Sua livre ejaculação só é possível graças à pílula, ao  Truvada, ao viagra, à imagem pornográfica...

O Truvada, como a pílula, talvez não tenha como objetivo melhorar a vida de seus consumidores, mas otimizar a exploração dócil dos mesmos, sua servidão molecular, mantendo sua ficção de liberdade e emancipação ao mesmo tempo que reforça as posições sexo-políticas de dominação pela masculinidade normativa. A relação com o fármaco é uma relação livre, mas de sujeição social. Vamos foder livremente, vamos foder com o fármaco. Com respeito a essa servidão molecular, parece não haver diferença entre a heterossexualidade e a sexualidade gay. Nos últimos 20 anos a sexualidade gay passou de uma subcultural marginal e converteu-se em um dos espaços mais codificados, regulamentados e capturados pela linguagem do capitalismo neoliberal. Talvez seja hora de deixar de falar de heterossexualidade e homossexualidade e começar a pensar melhor a tensão entre os usos normativos e dissidentes das técnicas de produção da sexualidade que aparecem hoje e afetam a  nós todas e todos.

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Para conhecer um pouco mais sobre Preciado e suas ideias, confira essa entrevista.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Valesca Popozuda, a filosofia e as armadilhas do classismo

Começo esse texto com uma mistura de surpresa e  medo. Na última semana os noticiários brasileiros em diversas modalidades midiáticas foram invadidos pelo fato de um professor de filosofia da rede pública de ensino do Distrito Federal ter feito referência à uma composição da cantora Valesca Popozuda em uma avaliação. Uma intensa mistura de susto, admiração, chacota, e estranhamento rapidamente viralizou-se e assumiu um lugar central no palco dos debates da semana. Como assim, uma funkeira poder macular com "tiro, porrada e bomba" o sacrossanto espaço da filosofia em seu impenetrável espírito europeu de metrópole e centro cultural do mundo? Inaceitável. 

Reproduzo abaixo duas fotografias encontradas na web que podem descrever bem a cisão que se processou nos posicionamentos jornalísticos e públicos sobre a pauta:


Essa sutil anotação à lápis "é sério isso?!" pode nos oferecer uma pista para refletirmos sobre como, no mundo ocidental a produção de conhecimento tem sido marcado por um forte elemento de classe  - pelo menos aqui pelos trópicos brasileiros em vésperas de Copa do Mundo (estamos de fato em um país futebolístico no qual o esporte, além do seu valor para a conformação de alguma identidade nacional, é 'tradição inventada', ideologicamente construída; nao se trata mais de simples lazer, é uma questão política - quiçá sempre tenha uma questão política).

Suspeito que tenhamos tão ferrenhamente nos acostumados a acreditar que só as elites pensam e possam produzir conhecimento que ignoramos e transformamos em suspeita a possibilidade de qualquer um que não seja "autorizado" e "legitimado" pelas Instituições que tomamos como críveis. Eu pergunto: por que não pode ser Valesca Popozuda uma pensadora? Por que não podem as classes mais baixas produzirem e se posicionarem criticamente sobre questões que tomamos como importantes, a exemplo da política e economia? Ao que parece, desde sempre fizemos isso - ainda que barrados pela acesso à voz ou pelo cerceamento do direito ao registro em nossa cultura e sociedade "grafocentradas". 

Se é verdade que não somos ocidentais, ou pelo menos que somos ocidentais de segunda, terceira, sabe-se lá que classe, também é preciso adimitir que incoramos em nosso processo de colonização - social e cultural - as mesmas estratégias que reconhecem o que pode ou não ser entendido como "conhecimento" científico, e por consequência, aquilo que se deixa ao léu, nas benevolentes tarjetas de "saberes tradicionais", "etnoconhecimentos", enfim, o que os "outros" dizem do mundo. Esse sistema que opõe tão vivamente uma modernidade ocidental-estudunidense e europeia às outras formas de viver e interpretar o mundo supõem que ambos os lugares (o lugar de verdade a partir do qual o centro fala, e o lugar a partir do qual nós sussuramos) falam de coisas distintas. Isso é enganoso, quando não limitador.

A escrita se converteu - ou melhor dizendo, foi imposta - como modelo tão melhor de produção de conhecimento que nos deixa assustados o fato de temos índices tão altos de "analfabetismo", como se o acesso à escrita fosse o único acesso ao(s) saber(es). É um caminho viável, mas não o único. Prova disso são as produções visuais e artísticas que se utilizam, de maneira bastante rebuscada, de outros recursos e linguagens que não a escrita. Não é possível construir conhecimento a partir desses artefatos? O que separa a música de Mozart da música de Valesca talvez não seja um maior ou menor aprimoramento estético (pensarmos assim, Mozart sempre sairia vitorioso, afinal, ele contribuiu para a formação dos modelos estéticos que convecionaram-se na música ocidental), mas sim uma convencionalidade e uma dinâmica assimétrica de poderes historicamente construídos e reproduzidos.  


Nos tornamos tão devotados a atual ordem do discurso que nos fizemos simplesmente cegos à qualquer possibilidade de verdade (e vontade de verdade) que não àquelas sancionadas. Se por um lado é verdade que aprendemos a discordar - ou pelo menos a acompanhar massivamente algumas discordâncias - por outro também é preciso refletir sobre a partir de onde emergem as críticas que acompanhamos. Nos abrimos a tantas possibilidades democráticas, mas esse classismo ainda nos prende. Por que Valesca não pode pensadora? Pela origem? Pelas classes (diga-se de passagem bastante heterogêneas com as quais se comunica? Pelo gênero musical que canta e representa? Não sei responder qual a razão que sustenta tal preconceito - ainda que tenha várias suspeitas - mas ao que parece o mesmo aparelho biológico de que necessitava Nietzsche e Wittgenstein. Mas, no auge do horror, uma coisa me deixa feliz: saber que há espaço para tal discussão. Bom sinal, espero.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Pegação, casamento e outras omissões do binarismo

Quando comecei a estudar pegação, há cerca de dois anos, meu interesse no tema eram bem claros. Havia naquele momento questões pessoais e políticas que me motivavam - e ainda motivam - a pensar tal questão. A questão pessoal se referia ao espaço e às coisas que aprendi quando, ainda adolescente, passava boa parte das minhas noites e tardes em determinados lugares de João Pessoa conversando e flertando com amigos e desconhecidos que, tal qual eu, procuravam por alguma forma de encontro ou contato corporal, que ainda que fossem quase sempre eróticos ou sexuais, transpassava tais noções e rapidamente se transformavam em múltiplas formas de parceria, cooperação e amizade. A outra questão, de caráter político, dizia respeito aos critérios e imagens que constituíram o que hoje reconhecemos como "identidade gay", uma identidade standard que apesar de tão fragmentária e polimorfa manifesta a cruel capacidade de rotular e castrar experiências efeitvas e  sexuais de maneira bastante essencializada. Me interessa hoje particularmente pensar como essa essencialização da identidade que se cristalizou em critérios e referências para definir quem é ou não gay está inscrustada em valores morais hierarquizados.  Nesse sentido gostaria de compartilhar aqui um artigo recente do blog "Os Entendidos" que se pretende justamente a questionar essas hierarquizações morais que se apresentam como tão naturais e comuns - como se fossem. Sem mais enrolação, apresento o texto na íntegra. 


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Casamento não é (necessariamente) melhor que pegação

Lindo moço gay inveja a felicidade sacrossanta que apenas um relacionamento pode trazer. Procura homem em bar e depois no Grindr, e fica arrasado quando só encontra sexo rápido. Cobrado pela família, vai surfar para esfriar a cabeça. Na praia, tal qual um presente de Netuno ou uma oferenda devolvida por Iemanjá, surge outro homem lindo. Entre brincadeiras de lutinha, a sorte sorri para nosso herói: ele é pedido em casamento!

Tudo muito legal. Apaixonar-se por alguém e ainda por cima ser correspondido é um milagre, já que não é fácil corresponder ao ideal romântico, tido como o “Santo Graal” da felicidade. O problema da historinha está no início e principalmente nas reações que ela tem provocado.

“Fofo”, “tocante”, “invejável”… Tudo isso foi dito do vídeo que conta essa história, com a estrutura típica dos contos de fada: depois de anos de amargura, a felicidade eterna vem na forma de um “príncipe”. Todos são lindos e sarados, mas quem não é hoje em dia, né? E logicamente, nenhuma família entenderia um filho (adulto) que busca sexo no celular. Então, só um idílico relacionamento sério pode trazer a paz para todos… Ah,pelamor!

Não tenho nada contra o casamento, que fique claro. O tal vídeo, produzido pelo fotógrafo Elvis Di Fazio para encerrar as celebrações do 2014 Sydney’s Gay and Lesbian Mardi Gras, é realmente lindo e a causa, nobre. Como o festival celebra de maneira muito viva o que é considerado um estereótipo da comunidade gay, com suas festas e plumas, é importante mostrar que muitos de nós só queremos assistir um DVD aconchegados num peito peludo canto com quem amamos. Para completar, a luta por igualdade civil é a maior causa política da agenda LGBT, sendo o casamento uma das questões mais debatidas. Todos que pensam em casar devem ter esse direito, só não está certo demonizar gostos e preferências alheias!
Atualmente, essa parece ser a grande disputa da comunidade gay. De um lado, temos os “discretos”, os que “se dão ao respeito” e “não levantam bandeiras”, além de ficarem chocadíssimos quando um vídeo de pegação expõe a “promiscuidade gay”. Do outro, as “pintosas” que “querem aparecer” e são o MOTIVO de não sermos levados à sério, junto com os libertinos que não conseguem controlar seus desejos e “fazem as pessoas normais nos tratarem como degenerados”. Como sempre, nos binarismos “másculo/efeminado”, “certo/errado”, “bom/ruim” e “moral/imoral”.

Esse feudo só nos empobrece. O início do vídeo australiano que é equivocado, ao mostrar o protagonista desesperado por não encontrar “o cara certo” na pegação, como se a liberdade – ou libertinagem – sexual fosse um problema. Por que ele não poderia ser feliz pegando geral e depois ter encontrando uma pessoa com quem quisesse construir um relacionamento? Por acaso vale mais um cara com “pouco uso”? É impossível construir algo com alguém que você conheça num Dark Room? E se por acaso você conhecesse essa mesma pessoa no dia seguinte, só que na igreja, ela seria algum pilar do “bom mocismo”? Poxa, sejamos menos moralistas, né?!

É exatamente por esse tipo de policiamento e valoração da experiência sexual que foi criada uma identidade gay, colocando-nos em uma “casta” inferior. É por causa desse tipo de pensamento que às mulheres é negado o domínio de seus corpos, transformando em “putas” as que ousam ter prazer. Esse é o verdadeiro desrespeito. Uma filosofia que desumaniza as pessoas e pretende que elas se envergonhem de seus desejos e amores, como se existisse um único formato válido de relacionamento. É isso que nos divide em “certos” e em “errados”, quando na verdade o único erro está na forma de julgamento.

O casamento é uma escolha entre pessoas que se amam e não uma “tábua de salvação dos perigos da vida de solteiro”. É absurdo que uma população vítima de opressão – e que portanto nunca será “normal”, já que não é tratada como tal – bata palmas para um julgamento de moral só porque ele foi “decorado” com um homem gostoso em cada ponta. Isso sem falar na música Same Love, que ninguém aguenta mais o tempo todo parece pedir desculpas por algo que “não poderíamos mudar, mesmo que quiséssemos”. Vamos superar isso!

Não gosta de pegação? Nunca chupou ninguém numa festa? Só usa o celular pra jogarFlappy Bird? Está dormindo no alto da torre esperando um príncipe da Disney? Ótimo! Continue assim e seja muito feliz. Só não tente impor essas escolhas como as corretas, pois talvez elas só sirvam para você. Ah, mas então eu é que estou impondo as minhas aqui? De forma alguma! Eu transarei com quem e quando quiser, independente de acharem certo ou não, muito obrigado. Respeito não se pede e nem se faz por merecer, pois é um direito. Quando eu quiser, vou até casar. O que não quero é ver um grupo dividido por uma ideologia que não é a nossa, mas de quem nos oprime.

Nada é necessariamente melhor do que nada. Algumas coisas são apenas mais adequadas a uns do que a outros. Goze e deixe gozar!

Confira o vídeo Marry Me abaixo:


marry me from elvisdifazio on Vimeo.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ruminações metodológicas

Ainda não sei se Roberto Cardoso de Oliveira estava certo ao dizer que o trabalho do antropólogo é 'ver, ouvir e escrever'. É fato que realizei muito disso nesse processo de construção e escrita de mim mesmo enquanto antropólogo - algo em movimento - mas honestamente não saberia dizer se é apenas isso que me diferencia de um sociólogo ou do entrevistador do IBGE. É possível que possamos pelo menos acrescentar algumas coisas nessa pequena lista do Cardoso: ler, ouvir, escrever, debater, fotografar, compor, discordar, agrupar, negociar, comunicar. Alguns poderão dizer que esses verbos auxiliares - constitutivos da minha lista - de alguma forma podem ser encaixados com os generalizantes da lista primeira, mas ao menos para mim não são. São outra coisa. Enquanto ex-tradutor, parto do princípio, um pouco extremista - de que se fossem as mesmas coisas não teriam palavras diferentes. Em última instância, meu ofício não é o mesmo. Envolve ver, seduzir e deixar-se seduzir, não apenas ver e ouvir como os outros seduzem.

Lembro, como quem olha para um mirante, algumas das últimas linhas do texto do James Clifford sobre a antropologia pós-moderna e a experiência da escrita. Não saberia repeti-lo, nem gostaria, mas na minha cabeça aquelas palavras se repetem assim: já passamos por uma antropologia distanciada, por outra através dos ombros nativos, agora está em tempo de inventarmos uma antropologia cara a cara. Isso foi dito há 11 anos e estamos nós aqui, a maioria tentando descobrir os olhos de nossos amigos, interlocutores, (des)informantes.

Enquanto pesquisador preciso me relacionar para poder desenvolver meu trabalho. Inicialmente isso pode significar muitas coisas; pensando as dificuldades que me vêm  cabeça pode remeter a: (i) grandes deslocamentos, (ii) perder-se no meio da mata, (iii) ameaça iminente de assaltos, (iv) agressão física, (v) ver algum amigo ou companheiro de pesquisa ser ameaçado e não saber como reagir. "Envolver-se é um risco"
é o tipo de citação de Clarice Lispector, mas quem disse que ela não fez antropologia? Como diria meu amigo Paulo Rogers Ferreira, há mais de antropologia em Clarice do que em boa parte da comunidade acadêmica brasileira. Mas nem só de espinhos se faz etnografia, nem só de conhas se vive em antropologia. Relacionar-se também pode significar ganhar, aprender.

Aprendi que não basta relato algum para criar qualquer cadeia lógica. Aprendi que os lugares estão em movimento, as pessoas correm e levam consigo boa parte do lugar em que estão, não apenas as lembranças. Tenho a sorte de ter informantes que se tornaram amigos e que, no meu atual tema de estudo me deram duas importantes lições: nesse jogo não existe café com leite e é mais útil um desinformante do que qualquer informação que se valha de verdadeira. 

Não sou café com leite, e desagrada bastante quando tento não aparecer, quando tento forçar um mimetismo que não existe. Estamos todos aqui para aparecer, desejar e sermos desejados - o mesmo para o oposto, sermos rejeitados. Mas ninguém passará desapercebidos. E que bom que tantas vezes apareceram em minha frente informações desencontradas, "verdades" divergentes, disse-me-disse-disdisse. Isso mostra o quão instigante são as pessoas.

O antropólogo trabalha com muitas coisas, dado que qualquer tema pode-se prestar a uma reflexão antropológica, mas ao menos para mim aquelas miudezas que atravessam o cotidiano e constituem os símbolos sociais pelas quais as pessoas caminham e significam sua história, lugar e vivência do mundo são as fontes de inspiração e reflexão mais interessante. Vivo uma experiência bastante distinta quando se fala em território, em fazer campo. Meu a+abjeto de estudo não tem CEP. Não pode ser encontrado pelo carteiro nem pelo cobrador. É móvel, elástico e por vezes "sonso". Parece ser e não é, engana, desengana, mostra e se revela. É sinuoso. Está online e offline, na igreja e no cemitério, caminha pelas ruas da areia e pelas areias de Tambaú.  Ele me exige, me pede, me usa, me chama - como agora. E é preciso ir, afinal, não fica bem deixar as visitas na sala esperando, não é?

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Abrindo o jogo

Olá pessoas,


com o objetivo de coletar algumas informações de forma mais ampla e com u m número maios de pessoas, hoje cedo elaborei um pequeno questionário na plataforma do Google Drive. Trata-se de um questionário simplificado com nove perguntas pontuais e específicas sobre a pegação em João Pessoa. Estou compartilhando aqui com o objetivo de poder ampliar a divulgação e assim poder receber informações de mais gente. Como sempre, as informações são sigilosas e não é preciso identificar-se. Agradeço aqueles que puderem contribuir e responder. Se você quer responder, CLIQUE AQUI para ser redirecionado para o questionário.

Atenciosamente,


Thiago

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Mister Paraíba 2013

O universo dos concursos de beleza é algo que já há algum tempo venho me dedicando. Acredito que esse seja um espaço bem interessante pra pensarmos como determinadas construções de gênero são elaboradas e encenadas através de ideias como "beleza", "naturalidade" e "aceitação". Na última sexta-feira, 11 de outubro, pude participar pela primeira vez de um concurso de mister, coisa que até então não tinha acontecido, tendo em vista minhas observações e participações desde que comecei este trabalho se dedicaram a pensar majoritariamente os bastidores de "feminilidade gay", seja através dos concursos de Miss Gay, seja pelo Top Drag, concursos que apesar de bem diferentes reúnem um público bem parecido e estabelecem uma circulação entre atores e personagens. 

O concurso que acompanhei este ano foi o Mister Paraíba, uma promoção vinculada à organização dos concursos macro de Mister Brasil e Mister Universo, constituindo assim fases preliminares aos que desejam participar desses outros concursos. Assim como nos demais concursos, as eliminatórias municipais nem sempre acontecem, e os candidatos podem se apresentar elegendo para si uma cidade qualquer do estado, que não necessariamente é a cidade onde nasceram ou onde vivem. No caso deste concurso, pelo que pude perceber, boa parte dos candidatos nasceram e/ou vivem nas cidades, razão pela qual aconteceram a coocorrência de várias cidades, a exemplo de Campina Grande, que teve três representantes, e João Pessoa, com dois. 

Aqueles candidatos mais organizados ou melhor estruturados comparecem acompanhados de preparadores, que além de auxiliar nas trocas de roupa, também atuam como maquiadores, conselheiros e motivadores. Todavia, esse é um serviço de que poucos dispõem. Dos nove candidatos que comparecem ao evento, apenas três tinham acompanhamento, e nesse caso, um destes era feito pela mãe do candidato, que além de motivar ajudou-o na maquiagem e preparação do cabelo.

De acordo com os organizadores, o evento contaria com a participação de doze candidatos, mas apenas nove comparecem: Dorenilson Farias (mister Bayeux), Randolfo Raiff (mister Boqueirão), Antony Brito (mister Campina Grande 1), Luan Elzo (mister Campina Grande 2), Junior Correia (mister João Pessoa 1), Agany Will (mister João Pessoa 3), David Myke (mister Mari), Cyro Gomes (mister Serra Branca) e Anderson Dantas (mister Sousa). 

O concurso está dividido em três provas que são realizadas sucessivamente. A primeira entrada é feita com os competidores vestido um traje esportivo. Aparecem vestindo as camisas de seus times de futebol preferidos, calça jeans e tênis. É nesse momento também em que são apresentados ao público e aos jurados. A segunda entrada é a de trajes de banho e nela os competidores entram apenas de sunga e com as faixas dos municípios que representam. Por fim, o terceiro desfile é o social e nele os candidatos aparecem com traje esporte fino, em geral terno, camisa e calça sociais, alguns usam gravata. Os intervalos e os momentos que antecedem os desfiles é marcado pela preparação dos candidatos e também pelas visitas de familiares, da comissão organizadora para dar eventuais instruções e de jurados que vêm motivar e dar conselhos aos envolvidos. 

Os jurados geralmente são escolhidos por estarem presentes ou atuarem no mundo da moda, dos destiles e dos concursos de beleza. São assim, antigos ganhadores de concursos anteriores ou pessoas que têm alguma relação de proximidade com o universo da beleza fashion, a exemplo de cabeleiro famosos, produtores de moda, entre outros. 

Apesar de ser um espaço que se apresenta ou se pretende anunciar como "heterossexual", a presença de travestis, transexuais e drag queens é uma marcante, e propicia perceber uma circulação entre os agentes deste universo nos diversos eventos que compõem uma espécie de "circuito dos concursos de beleza". Esse mesmo circuito conecta não apenas pessoas e agentes, mas também os liga através de cidades, estados e países, criando dispositivos de sociabilidade que se estabelecem através de relações de trabalho ou lazer. 

As conversas que ocuparam os bastidores do concurso, através de temas diversas, buscam afirmar uma performance de masculinidade que se pretende hegemônica: os times e campeonatos de futebol, mulheres bonitas, o universo do trabalho (mesmo que seja na  moda, e as tentativas de assédio), tentativas frustradas de encontros, traições e outras variações de experiências sexuais. A beleza que se constrói nesse espaço também se relaciona com uma estética hegemônica: corpos definidos ou próximos de um ideal atlético, jovens e brancos ou discursivamente bem próximos disso.

A música também é um ator importante, fazendo com que os participantes candidatos possam compartilhar gostos, trocar informações e contatos, sobre música, oportunidades de emprego, entre outros. Durante a  observação um movimento de grande comoção envolveu uma música. Enquanto se preparavam e já cansados pelas horas consecutivas de preparação (quase todos sem comer há várias horas), todos os rapazes começaram a cantar juntos uma música do cantor sertanejo Luan Santana; uma espécie de balada romântica que afirmavam suas pretensões de encontrar um amor romântico, com quem pudessem manter algum tipo de relação inquebrantável. 

Como dito anteriormente, as apresentações artísticas que constituem os intervalos da show são protagonizadas pelas performances de travestis e transexuais. Durante o concurso, apresentaram-se três transexuais: Yasmin Limah (miss transex Paraíba 2013), Isabella Campbell (Top Drag Paraíba 2013) e Aysha Scaranz (miss Paraíba 2013). As performances apresentadas variam do bate-cabelo tradicional à dublagens de cantoras consideradas divas do pop internacional, combinando assim diferentes estéticas e estilos. 

As fotos abaixo apresentam os candidatos e alguns fragmentos dos bastidores dos momentos que pude presenciar.





Candidatos

Junior Correia

Cyro Gomes

Myke David

Dorenilson Farias

Antony Brito

Agany Will

Luan Elzo

Anderson Dantas

Randolfo Raiff


Apresentações Artísticas
Aysha Scaranz

Yasmin Limah

Isabella Campbell

A escolha do vencedor é realizada através de um sistema de escolha. Na primeira fase, onde acontecem os três desfiles os jurados escolhem cada um os seus cinco preferidos. Dessa lista de preferidos é apontado o três com melhores pontuação e aí sim é eleito o Mister. Além dessa escolha acontece também no período anterior ao desfile a eleição do preferido do público através de uma votação online onde o público pode escolher seu preferido. Ao candidato que tiver sua foto mais curtida no Facebook é conferido o título de "Mister Paraíba Net". Ao final das apresentações, o resultado ficou assim definido:

Mister Paraíba Net (Mister Campina Grande)
3° Lugar: Cyro Gomes (mister Serra Branca)
2 Lugar: Anderson Dantas (mister Sousa)
1° Lugar: Agany Will (mister João Pessoa)


O concurso por si só não acaba ao término da eleição. Durante os dias seguintes continua reverberando através da repercussão nas redes sociais onde fotos são postadas, comentadas, candidatos parabenizados, intrigas sugeridas, enfim.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pegação em João Pessoa: construção de uma cartografia

[este texto é um fragmento editado do relatório final de pesquisa de Iniciação Científica que apresentei à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal da Paraíba em agosto de 2013, a respeito da minha pesquisa sobre práticas sexuais dissidentes e movimento LGBT na Paraíba, onde apresentei uma etnografia sobre a pegação no perímetro urbano da cidade]

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A cartografia da cidade começa a desenhar-se desde seu início-fim. Já no terminal rodoviário de João Pessoal é possível observar a existência de locais - remodelados a partir do uso que seus frequentadores lhes dão - para trocas entre homens. Não raramente, no ir e vir de passageiros, no ritmo frenético de partidas e chegadas, homens nos mictórios do banheiro do terminal trocam fluídos, olhares e apertões. Estabelece-se aí um jogo de silêncios e não-ditos, um desvio de linguagem comum para um novo conjunto de códigos, uma forma variante de expressar-se. Pernas arqueadas, olhos atentos aos lados e a pia e seu espelho, localizados mais a frente; movimentos que, aquém da cotidianidade de uma urinada passageira, quando lidos em conjunto e contexto revelam estratégias do desejo, (in)convenções. Ali mesmo aproximam-se e conectam-se por meio do olhar, dos gestos; negociam e avaliam a possibilidade de uma troca que poucos instantes depois irá se converter em sexo, fluídos e cheiros. Há alguns anos, além dos banheiros, o piso superior do terminal, onde os acompanhantes e curiosos vislumbram o movimento dos passageiros, por muito tempo sediou também as trocas e encontros entre homens. 

A região do centro é recortada por uma variedade de espaços destinados à pegação, sejam os mais tradicionais, instituídos no imaginário dos frequentadores - como os cinemas pornôs e as saunas, localizados na região do Varadouro -, sejam outros menos conhecidos e de caráter efêmero; esses últimos, em geral, são estabelecidos a partir de encontros fortuitos entre usuários de outros espaços de troca já tradicionais, como acontece, por exemplo, na subida do terminal rodoviário em direção à Lagoa do parque Solón de Lucena, nas imediações do Theatro Santa Roza, um dos estabelecimentos culturais mais antigos e prestigiados da cidade, e que é constantemente utilizado como espaço liminar entre os frequentadores do Cine Sex América, localizado ao lado. É lá que se conhecem, vez por outra flertam ou aguardam até que o trânsito na praça reduza para entrarem. Na região atrás do teatro ainda encontram-se relativamente próximos uma sauna e outros dois cinemas pornôs, além de algumas pousadas de baixo custo, onde pode é possível ficar a custo de menos de quinze reais por duas horas. 

O Cine Sex América se localiza na Praça Pedro Américo, ao lado do Teatro Santa Rosa e frente ao atual prédio onde funciona o gabinete do prefeito e outras secretarias de Estado. Em se tratando de cinemas pornôs, é o mais antigo em funcionamento na cidade, estando em atividade desde o início de 2004 e é propriedade do grupo pernambucano Ferreira, que tem outros espaços de exibição do gênero na cidade do Recife. O processo de construção e manutenção social do cinema está relacionado a um processo adverso, de declínio dos cinemas de rua. Em João Pessoa, o Cine Sex América se consolidou na contramão de um processo de falência registrado pelos três cinemas então em funcionamento na capital, o Rex, o Plaza e o Municipal. Enquanto o primeiro transferiu-se para um shopping, onde atualmente estão localizados todos os cinemas da capital, os demais foram “decaindo”, transformando-se primeiramente em salas de exibição de filmes eróticos e pornôs, para em seguida fecharem, dando espaço a outros tipos de empreendimento, notoriamente uma loja de calçados e uma Igreja protestante pentecostal. O ar de legalidade e regularidade no funcionamento do cinema é exposto com certo grau de distinção por seus proprietários, quando comparado aos demais cinemas em funcionamento: o Papai Cine Video e o Cine Sex Aquarius. 

O Papai Cine Video foi inaugurado em meados de 2006 e está localizado na Rua Cardoso Vieira, rua atrás do Teatro Santa Rosa e, portanto, bem próximo do Cine Sex América. É o maior dos cinemas em funcionamento e tem um público tão grande quanto o América. Sua estrutura física é composta de cinco salas de exibição que reproduzem simultaneamente e durante todo o dia filmes pornográficos de classes diversas: heterossexuais, gays, bissexuais e lésbicos. As superfícies de projeção variam de grandes telas a pequenos aparelhos de televisão ancorados nas paredes. Atualmente constitui-se como uma rede administrada pelos senhores Carlos, Ari e Edvaldo e que conta com filiais nas capitais de outros dois estados, além da Paraíba: Rio Grande do Norte (inaugurado em 2010), Teresina (inaugurado em 2008). Diferente do América e outros cinemas onde ocorrem pegação, tais como o etnografado por Vale (2000), o Papai, assim como seu vizinho, o Aquarius, não é um cinema propriamente dito. Trata-se de um antigo casarão art deco, como muitos dos prédios antigos na região, que foi improvisado para atender às necessidades do negócio. O prédio pode ser dividido em duas grandes áreas divididas por uma área para fumantes. Na primeira metade do cinema estão localizadas a bilheteria e o primeiro conjunto de salas de exibição. Logo ao atravessar a bilheteria, o usuário é confrontado com um negrume intenso. Exceto pelas luzes negras e pelo brilho da projeção não há iluminação interna. Logo à entrada estão localizadas um conjunto de três cabines individuais onde os caçadores podem masturbar-se enquanto assistem os filmes por pequenas aberturas. Em seguida à esquerda e à direita dividem-se as primeiras salas de exibição, que reproduzem respectivamente filmes de temática heterossexual e lésbicos. Em seguida, cada uma das salas dá acesso a outras, que se encontram no final com uma pequena abertura de pouco mais de um metro de largura que conecta as terceira e quarta salas de exibição, onde se apresentam, respectivamente, filmes como temática bissexual e pornografia bizarra (animais, pessoas com algum tipo de deficiência física, ou que têm seus corpos potencializados para determinadas atividades sexuais envolvendo perigo extremo). Segue-se então uma pequena área de fumantes e banheiro, que dá acesso ao segundo bloco do prédio onde se localiza a salas de exibição de filmes com temática gay, além de outras duas cabines privativas para casal e um underground onde, ao pagar um valor adicional, pode-se alugar o espaço por algumas horas para relações sexuais mais elaboradas.

Em conversas com os clientes, um dos aspectos que o coloca entre os mais conhecidos e frequentados é a discrição. Contraditoriamente, o cinema está localizado em uma avenida de alto fluxo de veículos durante uma parte significativa do dia; além disso, frente à entrada se localiza um ponto de ônibus, onde muitas pessoas esperam pela chegada de conduções que levam aos bairros da zona leste e oeste, região onde estão concentrada boa parte dos bairros populares e mais distantes da cidade. Frequentemente pude observar caçadores que, ao saírem do cinema, optavam por tomar a condução em outros pontos de ônibus, evitando assim encontrarem-se novamente com outros caçadores que haviam encontrado há pouco, no interior do cinema.

Por fim, o Cine Sex Aquarius é a filial de um cinema pornô de mesmo nome que tem sede no interior do estado, na cidade de Campina Grande. O Aquarius é o mais recente dos cinemas, tendo sido fundado em 2008. Tem um público consideravelmente menor, em relação aos demais, todavia é reconhecido como um dos melhores, justamente pela localização e discrição. Está localizado também na Avenida Cardoso Vieira, há poucos metros do Papai e uma rua atrás do América. Todavia, nada lhe chama a atenção dos caminhantes à rua. Uma fachada preta onde se desenha uma espécie de túnel negro com um pequeno aviso impresso em papel tamanho A4 indicando os valores e solicitando que os usuários não fiquem parados à porta. Em relação aos cartazes de sexo explícito colados à porta de entrada tanto no Papai quanto no América, o Aquarius é um equipamento modesto. Exibe dois filmes semanalmente, que são repetidos durante o dia em duas salas de exibição.


Fotos das fachadas antigas do Papai e do América, no centro de João Pessoa. 
Fotos retiradas daqui e daqui.


Continuando o percurso é possível encontrar ainda outros espaços para pegação na região do Parque Solón de Lucena, seja à noite, na região dos bambuzais que desenham os quiosques e bares do parque, onde os homens costumam masturbar-se eventualmente com a presença de outros, seja, mais uma vez, nos banheiros públicos dos shoppings comerciais e populares, ou de grandes mercados, a exemplo do Hiper Bompreço, um point já tradicional e de relativo prestígio, por onde muitos caçadores já passaram ou costumam frequentar. 

 Os pontos de pegação apresentam uma dinâmica elástica, o que favoreceu a sua permanência através de um dispositivo de constante atualização. Assim, espaços novos podem aparecer constantemente e serem frequentados por um número relativamente grande de pessoas e em breve, desaparecer. São processos contínuos e multiplicadores, apesar de efêmeros. A dinâmica social da pegação acompanhou o novo traçado urbanístico da cidade, não apenas em direção à praia, região onde hoje localizam-se a maioria dos pontos de pegação conhecidos e já famosos na cidade, como também acompanhou o desenvolvimento de certos bairros nas regiões mais afastadas do centro, como os bairros de Bancários, Mangabeira, Valentina, Cristo Redentor e Geisel, que posteriormente culminaram no desenvolvimento de um pequena mancha de espaços comerciais GLS, ou na consagração de alguns espaços como pedaços de sociabilidade entre homossexuais.

A cidade não é composta por um aglomerado de pontos distribuídos pelo espaço e desconectados entre si. Não apenas estão localizados numa certa historicidade, que remete, muitas vezes, à necessidade de espaços formalmente destinados e projetados para encontros com caráter homossocial, como também são constantemente reorganizados e articulados pelos frequentadores nos seus trânsitos e circulação. Tais espaços funcionam também de forma suplementar a outros equipamentos, como cabarés e pousadas, espaços com funcionalidades muito próximas e que remetem a regimes e usos do corpo e da sexualidade que dialogam entre si. Homens idosos costumam frequentar simultaneamente Rua da Areia, em busca de contatos com profissionais do sexo, bem como rapazes jovens e dispostos a sexo em troca de algum tipo de retorno (financeiro ou material).

A configuração de espaços de sociabilidade ao longo da paisagem não se configura de modo homogêneo. É possível afirmar, com base nos dados etnográficos, que desde a região do terminal Rodoviário no extremo oeste da cidade até os pontos de pegação que se apresentam na praia desenvolvem um contínuo que caracteriza as formas de interação, frequentadores e também as modalidades de práticas em cada espacialidade.

Na figura abaixo é possível visualizar a distribuição dos espaços de pegação na região do centro de João Pessoa.

Os espaços que investiguei se configuram como uma paisagem predominantemente popular: trabalhadores de regiões próximas, além de moradores de ruas e senhores idosos configuram a maior parte dos usuários desses lugares. Os tipos que fogem a este padrão em geral são aqueles que fetichizam relações sexuais com pessoas mais pobres, relacionando o desempenho sexual com algum vestígio de “animalidade” dos homens das classes populares e/ou negros, sexualmente mais vorazes e dispostos sexualmente. Esses outros desejosos constantemente pertencem a outras classes sociais, são mais velhos e vem de outras regiões da cidade, dos bairros de classe média ou média alta. As relações entre esses sujeitos distintos também assumem características bem particulares, que serão problematizadas mais a frente.

O processo de construção e estabelecimento de um circuito pegação na região do centro em João Pessoa está relacionado também ao próprio crescimento urbanístico da cidade, a partir da década de 1970. A região da praia, antes utilizada apenas como um espaço de veraneio começou a ser conectada com a região do centro e dos bairros tradicionais nos quatro sentidos (Jaguaribe a leste, Varadouro a Oeste, Tambiá a norte e Torre e Castelo branco a sul) com a construção da Avenida Epitácio Pessoa (Souza, 2005). Nesse movimento houve então um processo de transferência dos espaços de lazer do centro para a região das praias de Tambaú e Cabo Branco. Esse processo atualmente continua agora no sentido horizontal, com a expansão imobiliária e também dos centros de lazer e sociabilidade no sentido dos bairros do Bessa até Seixas e Altiplano Cabo Branco.

Seguindo o sentido da Avenida Epitácio Pessoa em direção a praia observa-se também um processo de diferenciação social entre os grupos e espaços localizados no centro e seus frequentadores. A região contempla dois grandes espaços “oficializados” para a prática da pegação, além de alguns outros que acontecem de forma esporádica. Tais espaços são, o banheiro do Hipermercado Extra, na esquina da avenida Amazona, e os banheiros do Espaço Cultural José Lins do Rêgo, um dos locais mais tradicionais e comumente referido pelos interlocutores de pesquisa. Segundo Roger, 22 anos:
O Espaço Cultural é um dos melhores! Sempre tem gente, e gente nova, se bem que ultimamente tem caído por conta da reforma e das coisas que tem lá... mas ainda assim vale a pena. 

Roger faz referência ao processo de reforma do prédio, especialmente da biblioteca localizada no subsolo do prédio e de algumas outras dependências, como o Cine Banguê, todos localizados na dependência. O Espaço Cultural é um local destinado à realização de feiras, eventos e festas de caráter cultural na cidade. O Espaço sedia além da biblioteca, um teatro de arena, um cinema, um teatro comum, dois mezaninos com vista panorâmica que são utilizados para exposição, a galeria Archid di Picado, o planetário, além de uma enorme área aberta para realização de atividades diversas. O Espaço é administrado pela secretaria de cultura do Estado e nos últimos anos vem sendo utilizado como local para feiras de negócios e eventos de grande porte, mas de caráter comercial, o que, na opinião dos frequentadores da pegação que acontece lá, vem diminuindo a intensidade de visitas. Além disso, as feiras trazem consigo um grande número de funcionários que se distribuem nas tarefas de segurança e higienização de todos os espaços, inclusive de alguns dos banheiros usados prioritariamente, como o que se situa na frente da Galeria Archid di Picado, próximo ao mezanino 1. Assim, tem sobrado aos frequentadores quase sempre contentar-se com o baixo número de gente, quase sempre indesejável, como leigos e funcionários, nos outros banheiros ou no estacionamento, o que é evitado, tendo em vista os riscos à segurança. 

Nenhuma outra região pareceu adequar-se de maneira tão própria a prática da pegação como o litoral, o trecho das praias urbanas, em João Pessoa. Nesses locais pode-se encontrar diversos points que costumam ser frequentados, durante os mais diversos horários por jovens, homens maduros e mais velhos dos mais variados locais da cidade. O desenho desse trajeto do circuito é recortado horizontalmente e estende-se entre os extremos da cidade, da Ponta do Seixas e o lugar comumente conhecido como “Sofá da Hebe” até o extremo norte e a fronteira com a cidade de Cabedelo. Nessa primeira parte do trajeto, que delimita a região do Seixas e Cabo Branco, a região é fortemente caracterizada pela paisagem natural de vegetação de restinga, caracterizada por arbustos baixos, que se emaranham em labirintos por onde se dispersam e novamente se encontram corpos fugidios no jogo de esconder e mostrar-se que se executa na mata do Seixas. A região costuma ser bastante frequentada durante a manhã e tarde e devido ao acesso difícil, não costuma receber pessoas de classes sociais mais baixas, que geralmente não dispõem de carros ou motos para chegar lá. Todavia, a dinâmica deste espaço vem se alterando significativamente nos últimos anos. Essa mudança ocorreu principalmente em função da estrada da região no itinerário turístico da cidade desde 2009, aproximadamente com a inauguração da Estação Cabo Branco Ciência, Cultura e Arte, um empreendimento da prefeitura municipal que não apenas tornou a região que antes era conhecida apenas pelo farol do Cabo Branco - um dos cartões postais da cidade, sendo o extremo leste do continente americano – como também estimulou o crescimento imobiliário na região ao redor.

Se por um lado esse novo fluxo de atividades, serviços e pessoas trouxe também mais facilidades de acesso e permanência na mata, também vem sendo visto como um processo de reacomodação dos antigos grupos de frequentadores. Não raro escuta-se entre as trilhas desenhadas a pegadas e preservativos que, nos últimos tempos, as coisas têm piorado e os assaltos se tornado frequentes por conta desses novos frequentadores. Ainda assim, o que parece haver é mais um processo de advertência e tentativa de reestruturação dos antigos grupos de frequentadores, que não querem perder o seu lugar e manter a forma como ele funcionava no que se refere a público, possibilidades de atividades, horários e outras coisas mais. Perguntando a alguns entrevistados se já haviam sido abordados de forma agressiva ou assaltados todos responderam negativamente, mas ainda assim reiteravam as recomendações para tomar cuidado, e se possível, ir para outro lugar. Ainda na região da praia do Seixas, descendo em sentido à zona norte da cidade, chega-se à Praça de Iemanjá, uma pequena praça adornada ao fundo com uma imagem da orixá Iemanjá que, há alguns anos, era usada pelos pescadores das regiões próximas para reunir-se para pesca. Atualmente, com o fim da tarde, a praça também serve como ponto de encontro entre rapares, geralmente mais velhos e de condição social mais pobre e que não gostam de subir a ladeira para o Seixas. As razões atribuídas frequentemente é o horário, que em geral, por ser durante a manhã, torna-se inacessível aos demais, mas também é registrada a queixa por parte de alguns pela forma como são olhados e muitas vezes ignorados na parte superior.

Em Tambaú, nas imediações do famoso hotel que recebe o nome da praia, também é comum, durante a noite, vislumbrar na parte de trás, já na areia um intenso fluxo de homens, geralmente brancos, de classe média ou que adotam um estilo de vida próximo a isso em termos de roupas, gostos e preferências musicais. Não há muito espaço para a conversa e eventualmente, as relações resumem-se em sexo oral ou masturbações em dupla. Dentre todos os pontos conhecidos no trajeto litorâneo do circuito da pegação, o Hotel, dada sua centralidade, é o único que recebeu ação ostensiva da polícia no sentido de estabelecer uma limpeza da região. As ações da polícia, através da cavalaria consistiam em rondas durante toda a noite na região que compreendia desde o Busto de Tamandaré até o Largo da Gameleira, na divisa entre as praias de Tambaú e Manaíra, sempre passando por trás do hotel a fim de coibir atentados violentos ao pudor e ator libidinosos praticados pelos frequentadores. Entre os usuários mais antigos, a exemplo de Renato que, segundo nos conta, costuma ir ao Hotel desde 2001, aproximadamente, quando chegou à cidade, vindo da região do brejo do estado, algumas pessoas chegaram as ser pegas, levadas à delegacia e moralmente constrangidas. Segundo Renato, essas apreensões aconteciam de forma disciplinar: por mais que houvesse grupos de 10, 20 pessoas, apenas um era levado pela cavalaria pra prestar esclarecimentos.

O trajeto do litoral é fechado então com dois dos pontos mais nobres e frequentados na região: na zona divisória entre as praias de Manaíra e Bessa, próximo ao Mag Shopping, e o final da praia do Bessa, no trecho próximo à praia de Intermares, na fronteira entre os municípios de João Pessoa e Cabedelo. O primeiro trecho é bastante conhecido pela frequência de rapazes que gostam de relacionar-se com homens mais velhos, geralmente “pais de família” que costumam frequentar o local após a jornada de trabalho; ainda assim, o local abrange uma variedade de tipos consideráveis, em geral mais brancos e de classe social média ou superior. O tipo repete-se na região final do Bessa, nas imediações do antigo bar Peixe Elétrico, este sim, frequentado majoritariamente por pessoas que não apenas tem um estatuto social mais abastado, como também tem seus corpos mais adequados aos padrões de beleza então vigentes. Não raro encontram-se homens “sarados”, “bombados” e “barbies”, como são costumeiramente classificados nas categorias nativas.