quarta-feira, 9 de abril de 2014

Valesca Popozuda, a filosofia e as armadilhas do classismo

Começo esse texto com uma mistura de surpresa e  medo. Na última semana os noticiários brasileiros em diversas modalidades midiáticas foram invadidos pelo fato de um professor de filosofia da rede pública de ensino do Distrito Federal ter feito referência à uma composição da cantora Valesca Popozuda em uma avaliação. Uma intensa mistura de susto, admiração, chacota, e estranhamento rapidamente viralizou-se e assumiu um lugar central no palco dos debates da semana. Como assim, uma funkeira poder macular com "tiro, porrada e bomba" o sacrossanto espaço da filosofia em seu impenetrável espírito europeu de metrópole e centro cultural do mundo? Inaceitável. 

Reproduzo abaixo duas fotografias encontradas na web que podem descrever bem a cisão que se processou nos posicionamentos jornalísticos e públicos sobre a pauta:


Essa sutil anotação à lápis "é sério isso?!" pode nos oferecer uma pista para refletirmos sobre como, no mundo ocidental a produção de conhecimento tem sido marcado por um forte elemento de classe  - pelo menos aqui pelos trópicos brasileiros em vésperas de Copa do Mundo (estamos de fato em um país futebolístico no qual o esporte, além do seu valor para a conformação de alguma identidade nacional, é 'tradição inventada', ideologicamente construída; nao se trata mais de simples lazer, é uma questão política - quiçá sempre tenha uma questão política).

Suspeito que tenhamos tão ferrenhamente nos acostumados a acreditar que só as elites pensam e possam produzir conhecimento que ignoramos e transformamos em suspeita a possibilidade de qualquer um que não seja "autorizado" e "legitimado" pelas Instituições que tomamos como críveis. Eu pergunto: por que não pode ser Valesca Popozuda uma pensadora? Por que não podem as classes mais baixas produzirem e se posicionarem criticamente sobre questões que tomamos como importantes, a exemplo da política e economia? Ao que parece, desde sempre fizemos isso - ainda que barrados pela acesso à voz ou pelo cerceamento do direito ao registro em nossa cultura e sociedade "grafocentradas". 

Se é verdade que não somos ocidentais, ou pelo menos que somos ocidentais de segunda, terceira, sabe-se lá que classe, também é preciso adimitir que incoramos em nosso processo de colonização - social e cultural - as mesmas estratégias que reconhecem o que pode ou não ser entendido como "conhecimento" científico, e por consequência, aquilo que se deixa ao léu, nas benevolentes tarjetas de "saberes tradicionais", "etnoconhecimentos", enfim, o que os "outros" dizem do mundo. Esse sistema que opõe tão vivamente uma modernidade ocidental-estudunidense e europeia às outras formas de viver e interpretar o mundo supõem que ambos os lugares (o lugar de verdade a partir do qual o centro fala, e o lugar a partir do qual nós sussuramos) falam de coisas distintas. Isso é enganoso, quando não limitador.

A escrita se converteu - ou melhor dizendo, foi imposta - como modelo tão melhor de produção de conhecimento que nos deixa assustados o fato de temos índices tão altos de "analfabetismo", como se o acesso à escrita fosse o único acesso ao(s) saber(es). É um caminho viável, mas não o único. Prova disso são as produções visuais e artísticas que se utilizam, de maneira bastante rebuscada, de outros recursos e linguagens que não a escrita. Não é possível construir conhecimento a partir desses artefatos? O que separa a música de Mozart da música de Valesca talvez não seja um maior ou menor aprimoramento estético (pensarmos assim, Mozart sempre sairia vitorioso, afinal, ele contribuiu para a formação dos modelos estéticos que convecionaram-se na música ocidental), mas sim uma convencionalidade e uma dinâmica assimétrica de poderes historicamente construídos e reproduzidos.  


Nos tornamos tão devotados a atual ordem do discurso que nos fizemos simplesmente cegos à qualquer possibilidade de verdade (e vontade de verdade) que não àquelas sancionadas. Se por um lado é verdade que aprendemos a discordar - ou pelo menos a acompanhar massivamente algumas discordâncias - por outro também é preciso refletir sobre a partir de onde emergem as críticas que acompanhamos. Nos abrimos a tantas possibilidades democráticas, mas esse classismo ainda nos prende. Por que Valesca não pode pensadora? Pela origem? Pelas classes (diga-se de passagem bastante heterogêneas com as quais se comunica? Pelo gênero musical que canta e representa? Não sei responder qual a razão que sustenta tal preconceito - ainda que tenha várias suspeitas - mas ao que parece o mesmo aparelho biológico de que necessitava Nietzsche e Wittgenstein. Mas, no auge do horror, uma coisa me deixa feliz: saber que há espaço para tal discussão. Bom sinal, espero.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Pegação, casamento e outras omissões do binarismo

Quando comecei a estudar pegação, há cerca de dois anos, meu interesse no tema eram bem claros. Havia naquele momento questões pessoais e políticas que me motivavam - e ainda motivam - a pensar tal questão. A questão pessoal se referia ao espaço e às coisas que aprendi quando, ainda adolescente, passava boa parte das minhas noites e tardes em determinados lugares de João Pessoa conversando e flertando com amigos e desconhecidos que, tal qual eu, procuravam por alguma forma de encontro ou contato corporal, que ainda que fossem quase sempre eróticos ou sexuais, transpassava tais noções e rapidamente se transformavam em múltiplas formas de parceria, cooperação e amizade. A outra questão, de caráter político, dizia respeito aos critérios e imagens que constituíram o que hoje reconhecemos como "identidade gay", uma identidade standard que apesar de tão fragmentária e polimorfa manifesta a cruel capacidade de rotular e castrar experiências efeitvas e  sexuais de maneira bastante essencializada. Me interessa hoje particularmente pensar como essa essencialização da identidade que se cristalizou em critérios e referências para definir quem é ou não gay está inscrustada em valores morais hierarquizados.  Nesse sentido gostaria de compartilhar aqui um artigo recente do blog "Os Entendidos" que se pretende justamente a questionar essas hierarquizações morais que se apresentam como tão naturais e comuns - como se fossem. Sem mais enrolação, apresento o texto na íntegra. 


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Casamento não é (necessariamente) melhor que pegação

Lindo moço gay inveja a felicidade sacrossanta que apenas um relacionamento pode trazer. Procura homem em bar e depois no Grindr, e fica arrasado quando só encontra sexo rápido. Cobrado pela família, vai surfar para esfriar a cabeça. Na praia, tal qual um presente de Netuno ou uma oferenda devolvida por Iemanjá, surge outro homem lindo. Entre brincadeiras de lutinha, a sorte sorri para nosso herói: ele é pedido em casamento!

Tudo muito legal. Apaixonar-se por alguém e ainda por cima ser correspondido é um milagre, já que não é fácil corresponder ao ideal romântico, tido como o “Santo Graal” da felicidade. O problema da historinha está no início e principalmente nas reações que ela tem provocado.

“Fofo”, “tocante”, “invejável”… Tudo isso foi dito do vídeo que conta essa história, com a estrutura típica dos contos de fada: depois de anos de amargura, a felicidade eterna vem na forma de um “príncipe”. Todos são lindos e sarados, mas quem não é hoje em dia, né? E logicamente, nenhuma família entenderia um filho (adulto) que busca sexo no celular. Então, só um idílico relacionamento sério pode trazer a paz para todos… Ah,pelamor!

Não tenho nada contra o casamento, que fique claro. O tal vídeo, produzido pelo fotógrafo Elvis Di Fazio para encerrar as celebrações do 2014 Sydney’s Gay and Lesbian Mardi Gras, é realmente lindo e a causa, nobre. Como o festival celebra de maneira muito viva o que é considerado um estereótipo da comunidade gay, com suas festas e plumas, é importante mostrar que muitos de nós só queremos assistir um DVD aconchegados num peito peludo canto com quem amamos. Para completar, a luta por igualdade civil é a maior causa política da agenda LGBT, sendo o casamento uma das questões mais debatidas. Todos que pensam em casar devem ter esse direito, só não está certo demonizar gostos e preferências alheias!
Atualmente, essa parece ser a grande disputa da comunidade gay. De um lado, temos os “discretos”, os que “se dão ao respeito” e “não levantam bandeiras”, além de ficarem chocadíssimos quando um vídeo de pegação expõe a “promiscuidade gay”. Do outro, as “pintosas” que “querem aparecer” e são o MOTIVO de não sermos levados à sério, junto com os libertinos que não conseguem controlar seus desejos e “fazem as pessoas normais nos tratarem como degenerados”. Como sempre, nos binarismos “másculo/efeminado”, “certo/errado”, “bom/ruim” e “moral/imoral”.

Esse feudo só nos empobrece. O início do vídeo australiano que é equivocado, ao mostrar o protagonista desesperado por não encontrar “o cara certo” na pegação, como se a liberdade – ou libertinagem – sexual fosse um problema. Por que ele não poderia ser feliz pegando geral e depois ter encontrando uma pessoa com quem quisesse construir um relacionamento? Por acaso vale mais um cara com “pouco uso”? É impossível construir algo com alguém que você conheça num Dark Room? E se por acaso você conhecesse essa mesma pessoa no dia seguinte, só que na igreja, ela seria algum pilar do “bom mocismo”? Poxa, sejamos menos moralistas, né?!

É exatamente por esse tipo de policiamento e valoração da experiência sexual que foi criada uma identidade gay, colocando-nos em uma “casta” inferior. É por causa desse tipo de pensamento que às mulheres é negado o domínio de seus corpos, transformando em “putas” as que ousam ter prazer. Esse é o verdadeiro desrespeito. Uma filosofia que desumaniza as pessoas e pretende que elas se envergonhem de seus desejos e amores, como se existisse um único formato válido de relacionamento. É isso que nos divide em “certos” e em “errados”, quando na verdade o único erro está na forma de julgamento.

O casamento é uma escolha entre pessoas que se amam e não uma “tábua de salvação dos perigos da vida de solteiro”. É absurdo que uma população vítima de opressão – e que portanto nunca será “normal”, já que não é tratada como tal – bata palmas para um julgamento de moral só porque ele foi “decorado” com um homem gostoso em cada ponta. Isso sem falar na música Same Love, que ninguém aguenta mais o tempo todo parece pedir desculpas por algo que “não poderíamos mudar, mesmo que quiséssemos”. Vamos superar isso!

Não gosta de pegação? Nunca chupou ninguém numa festa? Só usa o celular pra jogarFlappy Bird? Está dormindo no alto da torre esperando um príncipe da Disney? Ótimo! Continue assim e seja muito feliz. Só não tente impor essas escolhas como as corretas, pois talvez elas só sirvam para você. Ah, mas então eu é que estou impondo as minhas aqui? De forma alguma! Eu transarei com quem e quando quiser, independente de acharem certo ou não, muito obrigado. Respeito não se pede e nem se faz por merecer, pois é um direito. Quando eu quiser, vou até casar. O que não quero é ver um grupo dividido por uma ideologia que não é a nossa, mas de quem nos oprime.

Nada é necessariamente melhor do que nada. Algumas coisas são apenas mais adequadas a uns do que a outros. Goze e deixe gozar!

Confira o vídeo Marry Me abaixo:


marry me from elvisdifazio on Vimeo.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ruminações metodológicas

Ainda não sei se Roberto Cardoso de Oliveira estava certo ao dizer que o trabalho do antropólogo é 'ver, ouvir e escrever'. É fato que realizei muito disso nesse processo de construção e escrita de mim mesmo enquanto antropólogo - algo em movimento - mas honestamente não saberia dizer se é apenas isso que me diferencia de um sociólogo ou do entrevistador do IBGE. É possível que possamos pelo menos acrescentar algumas coisas nessa pequena lista do Cardoso: ler, ouvir, escrever, debater, fotografar, compor, discordar, agrupar, negociar, comunicar. Alguns poderão dizer que esses verbos auxiliares - constitutivos da minha lista - de alguma forma podem ser encaixados com os generalizantes da lista primeira, mas ao menos para mim não são. São outra coisa. Enquanto ex-tradutor, parto do princípio, um pouco extremista - de que se fossem as mesmas coisas não teriam palavras diferentes. Em última instância, meu ofício não é o mesmo. Envolve ver, seduzir e deixar-se seduzir, não apenas ver e ouvir como os outros seduzem.

Lembro, como quem olha para um mirante, algumas das últimas linhas do texto do James Clifford sobre a antropologia pós-moderna e a experiência da escrita. Não saberia repeti-lo, nem gostaria, mas na minha cabeça aquelas palavras se repetem assim: já passamos por uma antropologia distanciada, por outra através dos ombros nativos, agora está em tempo de inventarmos uma antropologia cara a cara. Isso foi dito há 11 anos e estamos nós aqui, a maioria tentando descobrir os olhos de nossos amigos, interlocutores, (des)informantes.

Enquanto pesquisador preciso me relacionar para poder desenvolver meu trabalho. Inicialmente isso pode significar muitas coisas; pensando as dificuldades que me vêm  cabeça pode remeter a: (i) grandes deslocamentos, (ii) perder-se no meio da mata, (iii) ameaça iminente de assaltos, (iv) agressão física, (v) ver algum amigo ou companheiro de pesquisa ser ameaçado e não saber como reagir. "Envolver-se é um risco"
é o tipo de citação de Clarice Lispector, mas quem disse que ela não fez antropologia? Como diria meu amigo Paulo Rogers Ferreira, há mais de antropologia em Clarice do que em boa parte da comunidade acadêmica brasileira. Mas nem só de espinhos se faz etnografia, nem só de conhas se vive em antropologia. Relacionar-se também pode significar ganhar, aprender.

Aprendi que não basta relato algum para criar qualquer cadeia lógica. Aprendi que os lugares estão em movimento, as pessoas correm e levam consigo boa parte do lugar em que estão, não apenas as lembranças. Tenho a sorte de ter informantes que se tornaram amigos e que, no meu atual tema de estudo me deram duas importantes lições: nesse jogo não existe café com leite e é mais útil um desinformante do que qualquer informação que se valha de verdadeira. 

Não sou café com leite, e desagrada bastante quando tento não aparecer, quando tento forçar um mimetismo que não existe. Estamos todos aqui para aparecer, desejar e sermos desejados - o mesmo para o oposto, sermos rejeitados. Mas ninguém passará desapercebidos. E que bom que tantas vezes apareceram em minha frente informações desencontradas, "verdades" divergentes, disse-me-disse-disdisse. Isso mostra o quão instigante são as pessoas.

O antropólogo trabalha com muitas coisas, dado que qualquer tema pode-se prestar a uma reflexão antropológica, mas ao menos para mim aquelas miudezas que atravessam o cotidiano e constituem os símbolos sociais pelas quais as pessoas caminham e significam sua história, lugar e vivência do mundo são as fontes de inspiração e reflexão mais interessante. Vivo uma experiência bastante distinta quando se fala em território, em fazer campo. Meu a+abjeto de estudo não tem CEP. Não pode ser encontrado pelo carteiro nem pelo cobrador. É móvel, elástico e por vezes "sonso". Parece ser e não é, engana, desengana, mostra e se revela. É sinuoso. Está online e offline, na igreja e no cemitério, caminha pelas ruas da areia e pelas areias de Tambaú.  Ele me exige, me pede, me usa, me chama - como agora. E é preciso ir, afinal, não fica bem deixar as visitas na sala esperando, não é?