sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ruminações metodológicas

Ainda não sei se Roberto Cardoso de Oliveira estava certo ao dizer que o trabalho do antropólogo é 'ver, ouvir e escrever'. É fato que realizei muito disso nesse processo de construção e escrita de mim mesmo enquanto antropólogo - algo em movimento - mas honestamente não saberia dizer se é apenas isso que me diferencia de um sociólogo ou do entrevistador do IBGE. É possível que possamos pelo menos acrescentar algumas coisas nessa pequena lista do Cardoso: ler, ouvir, escrever, debater, fotografar, compor, discordar, agrupar, negociar, comunicar. Alguns poderão dizer que esses verbos auxiliares - constitutivos da minha lista - de alguma forma podem ser encaixados com os generalizantes da lista primeira, mas ao menos para mim não são. São outra coisa. Enquanto ex-tradutor, parto do princípio, um pouco extremista - de que se fossem as mesmas coisas não teriam palavras diferentes. Em última instância, meu ofício não é o mesmo. Envolve ver, seduzir e deixar-se seduzir, não apenas ver e ouvir como os outros seduzem.

Lembro, como quem olha para um mirante, algumas das últimas linhas do texto do James Clifford sobre a antropologia pós-moderna e a experiência da escrita. Não saberia repeti-lo, nem gostaria, mas na minha cabeça aquelas palavras se repetem assim: já passamos por uma antropologia distanciada, por outra através dos ombros nativos, agora está em tempo de inventarmos uma antropologia cara a cara. Isso foi dito há 11 anos e estamos nós aqui, a maioria tentando descobrir os olhos de nossos amigos, interlocutores, (des)informantes.

Enquanto pesquisador preciso me relacionar para poder desenvolver meu trabalho. Inicialmente isso pode significar muitas coisas; pensando as dificuldades que me vêm  cabeça pode remeter a: (i) grandes deslocamentos, (ii) perder-se no meio da mata, (iii) ameaça iminente de assaltos, (iv) agressão física, (v) ver algum amigo ou companheiro de pesquisa ser ameaçado e não saber como reagir. "Envolver-se é um risco"
é o tipo de citação de Clarice Lispector, mas quem disse que ela não fez antropologia? Como diria meu amigo Paulo Rogers Ferreira, há mais de antropologia em Clarice do que em boa parte da comunidade acadêmica brasileira. Mas nem só de espinhos se faz etnografia, nem só de conhas se vive em antropologia. Relacionar-se também pode significar ganhar, aprender.

Aprendi que não basta relato algum para criar qualquer cadeia lógica. Aprendi que os lugares estão em movimento, as pessoas correm e levam consigo boa parte do lugar em que estão, não apenas as lembranças. Tenho a sorte de ter informantes que se tornaram amigos e que, no meu atual tema de estudo me deram duas importantes lições: nesse jogo não existe café com leite e é mais útil um desinformante do que qualquer informação que se valha de verdadeira. 

Não sou café com leite, e desagrada bastante quando tento não aparecer, quando tento forçar um mimetismo que não existe. Estamos todos aqui para aparecer, desejar e sermos desejados - o mesmo para o oposto, sermos rejeitados. Mas ninguém passará desapercebidos. E que bom que tantas vezes apareceram em minha frente informações desencontradas, "verdades" divergentes, disse-me-disse-disdisse. Isso mostra o quão instigante são as pessoas.

O antropólogo trabalha com muitas coisas, dado que qualquer tema pode-se prestar a uma reflexão antropológica, mas ao menos para mim aquelas miudezas que atravessam o cotidiano e constituem os símbolos sociais pelas quais as pessoas caminham e significam sua história, lugar e vivência do mundo são as fontes de inspiração e reflexão mais interessante. Vivo uma experiência bastante distinta quando se fala em território, em fazer campo. Meu a+abjeto de estudo não tem CEP. Não pode ser encontrado pelo carteiro nem pelo cobrador. É móvel, elástico e por vezes "sonso". Parece ser e não é, engana, desengana, mostra e se revela. É sinuoso. Está online e offline, na igreja e no cemitério, caminha pelas ruas da areia e pelas areias de Tambaú.  Ele me exige, me pede, me usa, me chama - como agora. E é preciso ir, afinal, não fica bem deixar as visitas na sala esperando, não é?

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